domingo, 29 de janeiro de 2012

levitação

Minha alma só deixa meu corpo
por um motivo: coçar minhas costas.

Espreme três cravos,
dá dois beijinhos.

Em seguida retorna pra casa
onde vive sossegada
feliz com o coração
entre as costelas.

pela eternidade que me sucumbe

Um poeta desatento é uma palavra
intrusa que aborta e sangra
o poema.

Depois de perdido o verso
o outro filho não alivia
o eclipse e a saudade.

São mais que versos
o que faz do poeta
um santo.

Eu, por exemplo, tenho os ombros
de São Francisco de Assis

sobre os quais passarinhos pousam,
fazem suas necessidades e cantam.

sábado, 28 de janeiro de 2012

memórias de um falastrão apaixonado

Antigamente,
há séculos,

quando meus lábios rachavam
eu descia ao jardim do prédio

colhia algumas pétalas
de certas flores

esmagava-as, pisava-as,
alcançando uma textura
de unguento.

Em seguida deixava sobre o parapeito da varanda
um tempão esse unguento até que um bem-te-vi
concluísse o ritual: era necessário que ungisse
três vezes no bico e debaixo das asas
o bálsamo.

Lembro-me que ao untar esse bagulho nos lábios
logo caíam as escamas e assustava-me
a jovialidade da minha boca.

Descia pra calçada
e perdia a conta
das meninas
que beijava

todas vindo da pracinha
algumas desiludidas
do seu príncipe.

Ainda guardo dentro de envelopes secretos
cartas amorosas beirando loucura
e línguas inteiras embrulhadas
com lindos lacinhos.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

o glutão viciado em fome

Agora sei como cantar a felicidade
por acaso não é ela essa ausência

sem vigor, pálida
de inflamadas bochechas
a tocar trombone volteando a praça?

Ou seria ela esse relógio parado na parede
ponteiros longos e tensos que nunca
alcançam o horizonte?

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

adejar

Escrevo poemas, baby.

E não seria diferente
com esta alma
que voa.

A curiosidade das palavras
ressoa pelo corredor escuro.

Meus passos se perdem
onde elas costumam fazer ninho.

Escrevo poemas, baby.

E morreria se não tivesse
esta alma agarrada aos meus chinelos.

Imensamente tudo tão mágico e feroz
quando as palavras roubam
os meus chinelos.

Correm loucas pela casa
com meus chinelos escondidos.

Alegria delas é cheirar o suor impregnado
nas marcas escuras de cada dedo.

Meus chinelos o ópio das minhas palavras.
E todas se deleitam quando durmo.

Debaixo da cama guardo meus chinelos
e sobre eles as palavras -
sonhando.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

o ceifeiro dos campos de espuma

não há velhice, meu caro
mesmo que os dedos decrépitos
irritem-se e urrem e digam que sim

que sim senhor há velhice
na palma da mão e nas falanges
eu digo que não há velhice, meu jovem

mesmo que os joelhos rosnem
e sussurrem metálicos que há velhice
no andar desolado e no curvar-se absorto

confirmo que não há velhice, menino
mesmo que os cabelos brancos enlouqueçam
mesmo que os lábios ressecados blasfemem

asseguro-lhe, criança
que não há velhice no espírito
apartado do instante que dorme

e se quiser tomar a sua vida de volta
retorne aos seus vícios de ontem
sem murmúrios

mesmo assim
só haverá velhice

depois da chuva
quando seu barquinho
tiver sumido dentro do bueiro

ora, mas o que é um barquinho
para um velho esquecido
que tem o corpo a julgar
como inimigo?

do inferno e dos sentidos

Alguns raios da tarde descendo pela parede
é o suficiente para que eu perceba
que perdi o poder sobre
meus males:

aquele coração peçonhento
aquele frio no intestino.

E as virtudes, se existiram,
não vivo sob o jugo delas.

Estou só e liberto como há de ser:
um homem infinitamente feliz
de sua tristeza.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

o zeloso pégaso

Eis de volta meu pégaso
a alegria da casa
com suas asas
curadas.

Agora ele pode subir ao telhado.
Flertar de perto as estrelas.

Sei que será um tormento
tardão da noite seus uivos.

Meu bom pégaso deitado sobre o telhado
pesca estrelas como quem vai ao mar
abençoado e traz à praia
todo tipo de peixe.

Vigia debaixo das asas um frasco de lavanda
e um buquê de rosas: as estrelas são peixes,
precisam de mimos.

Assim, sorrindo, com um frasco de lavanda
e um buquê de rosas meu pégaso sobe
ao telhado pescar estrelas.

Será um tormento sua dor mais tarde
depois que amanhece e as estrelas
perfumadas e floridas

partem também sorrindo
pro outro lado da praça.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

sinais

A mulher sabe da fêmea
que lhe assopra aos ouvidos:

"este é solitário,
um pobre monge."

E principia ela a andar descalça,
ao quase requebro, olhos fingidos.

Desatino são dentes trincando lábios.
O que eu fiz em silêncio.

Mas não chames de loucura aquele silêncio:
a cada passo que tu davas à tua varanda
eu refletia como é miserável a solidão.

E ao retornares pro fogão agachando-te
eu já conhecia teus pensamentos.

Não é mistério para o monge
a mente de uma mulher

se a fêmea se veste
só de camiseta

a passear
pela casa.

domingo, 22 de janeiro de 2012

amor doutro mundo

Se cai do teto uma perninha de aranha
sobre meu bermudão surrado
sinto frio na espinha.

Já ofereci a deus minha alma
e se deus não existir 
quem cuidará 
da minha
menina?

A alma é minha menina.
A única que adoro
dia e noite.

E não importa se ela chegou
de trem ou de foguete.

De alforge 
ou de rendinha.

o passado não desbota

não, meu amor, não preciso que o tempo mude
para escolher do guarda-roupa uma camisa adequada

ando mesmo nu pelo quarto e meu cheiro forte atravessa
paredes chega às narinas da vizinha, ui, ouço um suspiro

não, meu amor, nunca fui um cavalheiro
sou mesmo um bruto, um cavalo
triste e esnobe

que apesar das patas quebradas
ainda galopa pelos campos
de girassóis

não, meu amor, não há tempo bom
circulando em minhas veias
o meu sangue pouco vive
pouco se alegra

creia, meu coração é um patife
cujo batimento lembra
a luxúria do engenho -

bagaço,
aguardente

e desse jeito virando a noite
levando junto o travesseiro

meu sangue não se confunde com minhas lágrimas
por sinal esqueci o dia em que elas deslizaram
pelas faces

não, meu amor, não sou um romântico
sou um bêbado sóbrio, um demo safo,
um santo manco, um sapo mudo

e tudo sobre a estante
é uma alma penada
que combina
comigo.

sábado, 21 de janeiro de 2012

o jardineiro descalço

Em anos bissextos deixo o corpo, mudo de pele,
troco o dente da frente pela sétima vértebra
e ao sorrir todo o sistema nervoso palpita.

Em anos bissextos ganho de presente
uma alma novinha em folha.

Sem linhas traçadas, sem páginas gordurosas,
sem vestígios de traças, cupins e baratas.

Tenho a chance de recuperar a moeda de dez centavos
que um dia eu perdi dentro da rachadura da parede.

Em anos bissextos posso perdoar a mim mesmo
do olhar cruel e da voz cínica que derrubaram
quem se importava comigo
e me amava.

Em anos bissextos como maçã
e ouço os pássaros

sem nenhum desejo
de rastejar sinuoso
ou voar boçal.

Em anos bissextos meus punhos inflamam,
meu coração para de bater, a mente pifa,
a língua seca, o sangue flui
e não volta.

Em anos bissextos eu morro,
eu morro de óculos,
bermudão,

os pés sobre as correias
de um velho chinelo.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

primeira comunhão

Parece que pouco esforço fiz
ou esforço algum

e tenho um filho
de lá para cá

entre o quarto
e a cozinha -

ora vem com uma taça de sorvete
ora joga dama com o computador

deixa um download aberto
e parte novamente
para a cozinha.

Tudo é mágico nele:
sorriso, voz, olhos de cutia.

E eu me pergunto -
"Quem me deu esse menino?"

Passei tanto tempo dormindo,
ei-lo altivo e brincante

fazendo graça,
pilhéria do mundo.

E eu me assombro -
"Quem me deu esse menino?"

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

cabelos brancos em estátua de bronze

Não sossegue
pois nem a poesia
que é origem e fim

lhe dará resposta
sinta, quando acaba o poema

tem aquela voz dentro gasta
e ainda aquela outra fora
em nascimento.

Confuso assim mesmo
caso não fosse

teria o poeta
um fácil destino.

Espere o último olhar
trincar os dentes

então você somente
saberá se valeu a pena

o caminho escolhido
o rio nunca atravessado.

Triste assim mesmo
é tão triste assim mesmo

se nada foge
se tudo é lembrança.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

cânticos de pássaros

Meus animais estão com fome.
Não posso escolher entre
um ou outro.

Ambos comem carne
e também adoram
girassóis ao azeite.

Se debaixo da chuva eu cruzasse os braços
e não os alimentasse o que fariam meus animais?

Comeriam-me vivo meu fígado de ovelha
e meus cílios grãos de mostarda?

Meu amor,
não siga o caminho
das vidraças quando chove.

Não se comova tanto -
não são lágrimas
no rosto delas.

fogo do fogo

Se a poesia for mesmo importante para tua vida
não sentarás à mesa com três caras sinistros
porque teu amigo te convidou.

Não demora teu amigo some
e os três sujeitos sinistros

trocam entre si
olhar assassino
e decidem
te matar.

Entrega teu coração a Deus logo cedo
antes de dormir e antes que desça
a aurora.

Mas agora Deus está ocupado,
furioso com Abraão -

dedo em riste,
puxando-lhe a orelha,
gritando-lhe ao ouvido.

"isto não é sinal de fé
é loucura, Abraão!"

Aquela imagem nunca mais sairá
da cabeça do filho de Abraão.

Deus não viu mas se viu permitira
que o filho de Abraão pelos vãos dos dedos
que lhe encobriam o rostinho assustado
aprendesse algum tipo de mistério
naquele dia incrível.

Se a poesia for tão importante para tua vida
passa reto quando teu amigo
mesmo que seja amigo
de nascença

te convidar à mesa para beber
com três caras sinistros.

Nem pegues teu filho pela mão
atravessando um deserto
com um punhal
à cintura.

alcova

Não tenho a mínima ideia dos outros com suas paredes
mas das minhas eu cuido: deixo teias de aranha
à vontade, nódoas de infiltrações da chuva

e só uma vez colei fita gomada
tapando as rachaduras
pois é um perigo
escorpiões.

Por muito tempo houve equívoco da minha parte:
via nelas tristeza, silêncio, solidão, cinismo.

Cegueira minha,
as minhas paredes
são felizes com o tempo.

Se chove e descem lágrimas das suas quinas
ou se venta forte e seus insetos
são arrastados

elas recebem tudo de bom grado
sem exclamações ou murmúrios.

As paredes do quarto parecem com seu dono
como é igual o bichinho de estimação
àquele quem dele cuida.

Eu cuido das minhas paredes -
deixo-as à toa e não me espanto
com o sangue das muriçocas
na pintura branca
do seu rosto.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

mosteiro

Faço-te um poema
para que durmas
com os anjos.

Não te assustes
com as minhas lágrimas.

Eu não sou um anjo.
Eu nunca vi um anjo chorar.

Pensando bem,
escrevo-te um poema
para que sonhes com um poeta.

Poeta chora e pensa
tantas vezes em matar-se.

Não te apavores.
Digo matar-se em outro sentido.

Entrando e não saindo
de dentro das botas
ou perdido dentro
das paredes.

A verdade é que te faço um poema
para que tu não durmas

e compartilhes comigo
meus pulsos inflamados.

Mas se desejares anjos,
que seja.

Acostuma-te com o sorriso
com o eterno sorriso deles.

Um poeta dopado de analgésicos e anti-inflamatórios
já é um milagre escrever alguma coisa talvez lírica
que faça, enfim, os anjos caírem às lágrimas.

Se vês algum tipo dessas lágrimas na minha face
então crê, meu bem, que sou um anjo -

desses doidões
e silenciosos.

da varanda é formoso o balé

O que seríamos nós sem as palavras.
Essas meninas loucas.

Nunca as vi de jeans.
Só as vejo de vestidos.

Leves, soltos,
sem botões.

E quando minha vista está apurada
vejo, também nada usam por baixo.

Passo longas horas voyeur
admirando o segredo das palavras.

Quem disse que elas têm família
certamente nunca as viram
por baixo do vestido.

Os vestidos de florezinhas,
estampados, bordadinhos,

às vezes lisos sem um fio
de costura é apenas
sedução

para que meus olhos se detenham em seus raios
feito folhas brilhantes caindo da copa de uma árvore.

Antes que cheguem às calçadas
já tenho engolido milhares delas.

Se eu estiver em um dia de sorte
nem precisarei vê-las por baixo.

Descerá pelos meus olhos
até meus lábios cada detalhe.

As palavras são femininas
e as interjeições seus batons.

Pertencem a uma única classe:
à classe do olhar de quem as olha.

O meu é um olhar ávido
de menino de dez anos.

Não tenho fome
enquanto me encanto.

domingo, 15 de janeiro de 2012

quando as andorinhas somem

Se o amor acaba um dia
o meu amor não acaba em um dia.

Pois a cada dia pressinto um nervo inflamado
em seguida uma artéria de cor assustadora.

Isso é o amor eterno
na fragilidade do corpo.

O amor que se apega a outro amor
sob juras e consequências,
este acaba.

Porque a cumplicidade
não vive de lembranças.

O velhinho que perdeu sua amada
olha para a fotografia desbotada.

E a foto ao cair no chão decerto
as lembranças se confundem.

Cadê o olhar do outro amor
para amenizar a fraqueza
dos rins?

O meu amor envelhece.
As minhas coisas envelhecem.

E cego se eu vier a estar um dia
não me faltará a imagem
da amada.

Nem tombarei junto com a fotografia
no momento em que o vento
assoprá-la da minha mão.

Quem é responsável por minhas lembranças
são meus nervos inflamados e essas artérias.

janela aberta

Por isso é sempre bom
não meter uma bala
no peito

ou beber um frasco
de comprimidos.

O dia seguinte é um rio
que já ultrapassou a perda

e quando se aperta o peito
e a garrafa de vinho
sorri feito o diabo

então é melhor
enfiarmos a cabeça
dentro do travesseiro.

Não dura tanto tempo o colapso nervoso
se as faces não se contorcem

e o coração logo entende
que a loucura não tem
nada a ver com ele.

Jogue longe o travesseiro
olhe bem para o teto

e se houver algum tipo de inseto
parado, meio caladão

como se paralisado por lembranças
de outros tetos e de outras teias

é hora de lavar o rosto
e ver se a garrafa de vinho
ainda sorri aquele olhar cínico

de quem ao bebê-la
acordaria com o diabo.

Se a garrafa de vinho tiver perdido
esse mau agouro e se o inseto
parecer um anjo sereno

esconda então seu revólver sobre o guarda-roupa
lance ao vaso sanitário um a um dos comprimidos.

Seria mais correto levar seu revólver ao ferreiro.
Ouça as marteladas sobre o cano e o tambor.

Seu filho um dia crescerá
e mesmo ainda menino
não há em casa
lugar seguro.

Diria até que aquele sorriso cínico do diabo na garrafa de vinho
era o primeiro abraço, o primeiro empurrão, a primeira onda
para um tiro no peito ou um frasco inteiro
de comprimidos fatais.

O dia seguinte é um rio
que já visitou o mar.

sábado, 14 de janeiro de 2012

histeria

Que a gargalhada pertença ao outro.
Que o meu sorriso só se divida
entre a leve ponta do canino
e o frio lábio.

Doem meus ouvidos as gargalhadas
de quem não finge tão bem.

Uma boa gargalhada
não deve ter motivos.

Deve ser trêmula,
aterrorizante.

Uma coruja gargalha
quando pia sobre
a igreja.

E as andorinhas tremem
conscientes da morte.

Isso me interessa,
esse tipo de gargalhada.

Ai dos pequenos passarinhos
que hão de ouvir de perto
a gargalhada da coruja.

Depois será a vez do gavião
visitar dentro das torres
os pombos.

Pena que o gavião agora
está aflito por questões
de família.

Todos os filhotes estão bem,
obrigado, mas há aqueles
distraídos transeuntes
que teimam passear
debaixo do ninho.

E há os loucos
que ainda gargalham.

Inclusive alguns pombos
que ingênuos ou incrédulos
procuram comida nos canteiros.

Será que eles não percebem
que a mamãe gavião
está no seu limite?

Voltem para dentro da torre.
Deem um tempo.

Cansei de assistir a pombos degolados.
E os seus tênis vermelhos arrancados
dos seus pés.

Não acredito que ninguém não tenha notado
que os pombos só usam tênis nike vermelho.

Já mencionei essa imagem tantas vezes.
Mas sempre me parece que digo uma mentira.

Olhem para os pés dos pombos.
Vejam seus tênis nike vermelho.

Certo dia um amigo confessou-me
que nem os pombos velhos
tiram as sapatilhas.

Eu disse que não eram sapatilhas.
Eram tênis. Depois pensei -

ora, talvez dentre eles
exista quem prefira
uma sapatilha
a um tênis.

Eu não sou um pombo.
Não como migalhas.
Não bico os olhos
das flores.

Muito menos dou voltas em torno da praça
de tênis ou sapatilhas. O meu negócio
é observá-los, a eles os pombos
e as corujas e os gaviões.

Todos na praça.
E acreditem, nessas horas
a minha gargalhada é verdadeira.

Vem do intestino,
esôfago e pulmões.

a formiguinha reflexiva

Há duas notórias heresias:
falar de Deus e da Poesia.

No entanto
herege que sou

com uma cara lisa e de pau
cometo tal tolice porque

creio que é muito pouco
apenas escrever versos

e apenas ter fé
diante das paredes.

Confesso-me então o herege
em certas horas de pavor
e inutilidade.

Chegará o dia não do silêncio
mas das ruas - bebida,
mulheres e ópio.

Nesse dia serei um homem correto.
Sem mazelas e sem aquele suor frio.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

as sombras não têm nomes

A mulher da minha vida partiu
antes que eu tivesse visto
ela na praça comendo
pipoca.

Em todas as esquinas
que dobrei apressado
ela já havia fugido
no trem

e já tinha atravessado
o arco-íris das montanhas.

Um trem que leva
quem nunca conhecemos

jamais haverá de apitar
aos nossos ouvidos
a chegada
do amor.

A mulher da minha vida
para meu agrado

não me viu
sentado na fonte
mascando chiclete.

Da mesma forma
que a perdi no trem

ela esqueceu a fonte
de águas coloridas.

Tive que crescer
para entender
que eram plásticos
colados nas lâmpadas.

então creio que o arco-íris das montanhas
também são plásticos coloridos
da imaginação.

Apesar dessa verdade óbvia e dilacerante
permaneço de vez em quando visitando
estações e me emocionando

com aquele arco-íris refletido
na poça da chuva fina.

A mulher da minha vida
para meu deleite e delírio
não me ouve e não lê
esses versos.

Não haveria motivo.
Nós não nos conhecemos.

Quem sabe ela até odeie
esse tipo de molusco
que faz poemas.

E quem sabe eu até ignore
a mulher do meu destino.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

nuvens

O sonho é o meu pão de todos os dias
mesmo que seco não me engasga.

O sonho é a minha oração,
meu copo d'água sobre a cômoda.

A fresta do entardecer
que passa pela porta

e bate na parede onde vejo
algumas formigas tecendo mantas
para o talvez inverno que se aproxima.

Sou um sonhador nato, nativo, natural.
Embora algumas vezes eu quebre
xícaras no teto e dê nós
nos tênis sujos.

Mas isso também é sonho.
Urro de um homem primitivo.

Que ao final da noite
recolhe-se na sua caverna
e procura desenhar seus primeiros castelos.

quem sabe do amanhã é o bem-te-vi

É certo como a morte -
não me caso novamente.

As mulheres que encontro
roubam todos meus anéis
e fogem no meu pégaso.

Não me deixam telefone,
links de boa música
nem um olhar
até breve.

Como sonhar em casar com esse tipo de mulher
que de mim só deseja meus anéis de aço cirúrgico?

A única com a qual fui ao cartório
deixou-me assim de repente

só porque recusei
arrancar do meu dedo
um anel feito do seixo
de uma praia deserta.

Está decidido -
não me caso

e ao encontrar uma mulher
escondo todos os meus anéis

dentro do bolso
do meu velho jeans.

Agora também é verdadeiro -
no dia em que uma mulher beijar meus dedos
sem olhar para os meus anéis
e fazer minhas unhas

então serão dela
anéis, dedos

e todas as nódoas brancas
das unhas da minha infância.

o destino é falastrão

Após muito refletir cheguei a seguinte conclusão:
o jambo foi amante da maçã.

Ao morder um jambo
dói a vista a sua pele
de tão branca feito
um prisioneiro

que não sai da cela
saudoso da sua amada.

Enquanto a maçã mordida
esquecida sobre um livro
pouco tempo entristece

e fica com uma cor morta
de quem perdeu as esperanças
em encontrar o seu cavalheiro.

Sinto aflita minha alma
por nada poder fazer

senão devorar o jambo
e reparti-lo com uma senhorita
que tenha batom vermelho nos lábios

e jamais esquecer uma maçã pela metade
mesmo que o livro me prenda a atenção
e me faça suspirar por longas horas.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

antes que o sol me apavore

A noite debaixo da escrivaninha
não relembra livros da estante
nem das dores do peito
sufocado.

A noite é irmã da escrivaninha
como sou irmão das sombras
de todas já vistas

naquela infância jurada
de assombrações.

Nunca tive medo da chuva -
apavoravam-me os trovões
e rasgavam-me a alma
os relâmpagos.

Depois de quebrar muitos dentes contra paredes.
De assistir a tantos travesseiros com insônia.

Compreendi que é a noite amiga
minha única amiga que me traz
doces e sorvetes

mesmo que seja
uma noite vazia.

E que apenas um par de botas
cumpra seu dever de zelar
pelo seu dono.

As meias dentro são lençóis
para o dia que há de nascer

e reconfortar cada dedo
e cada unha encravada.

Meu par de botas
é um bom amigo

e as meias
uma boa alma.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

o poema

Escrevo este poema para quem não está sozinho.
Para quem tem botas e uma lâmpada mágica.

O poema que escrevo
é um poema sem dono.

Uma vez que não conheço
nem de perto nem de longe

quem ouve as batidas do meu peito
ou o silêncio do meu cílio que cai.

Escrevo para quem ama a si mesmo
sem que tenha que cheirar cocaína
ou comprar um vestido novo.

Como eu havia previsto
escrevo este poema
sem noção alguma
do que seja amor
ou solidão.

Escrevo este poema para alguém
que não esteja sozinho nem traga
tanto sal do mar dentro dos olhos.

Às vezes as conchas mudam de forma -
algumas são lágrimas e vêm juntas as pérolas.

Escrevo este poema para alguém
que o receba com afeto
e segredo.

E saiba entender o valioso tesouro das conchas.
Das conchas que sorriem sem necessidade
de abrir-lhes a carne com uma faca.

domingo, 8 de janeiro de 2012

terras distantes

Tanto tempo sem mulher
faz do bárbaro um apaixonado
pelo sangue dos seus inimigos

esquece do caminho de casa
do bosque com suas flores
amarelas e vermelhas.

A sua paixão é admirar
os corpos destrinchados
de outros bárbaros

e dos sobreviventes
os rostos sujos de pólvora.

Tanto tempo sem mulher
faz do bárbaro um louco
que range e abre a boca
evocando mais guerras.

Mas tudo cessa
como nasce outro dia

e na estrada o vento sopra poeira
cujos grãos sepultam os casacos de javali.

O bosque não muda
e a casa é logo adiante.

Com os olhos lacrimosos,
feridos, quase cegos

o bárbaro escuta seu coração
pela voz sussurrante da sua mulher.

Corre, corre bárbaro
que a tua guerra agora
é na cama de folhagens.

Tanto tempo sem mulher
tanto tempo sem mulher

também faz de um poeta
um bárbaro sanguinário
que encontra na parede
seu mortal pesar:

sua fotografia
e da sua amada.

mocinho

O meu príncipe um dia crescerá
aliás todos os dias seus pés sufocam antigos tênis
e os seus olhos passam a ter um brilho diferente

como se a alma já se alargasse
e ultrapassasse seus cílios.

Meu príncipe sem dúvida
nasceu para logo
que amanheça

lhe caia bem sua túnica de ouro e jasmins
e reconheça do telhado
em todas as estrelas
o mesmo brilho.

O meu príncipe dorme agora
e eu o amo de forma natural
sem nada que me possa

apertar o peito
ou sugerir sonhos.

O meu príncipe é um presente
uma estrela de dez anos

enviado pelo mesmo anjo
que certa vez me dissera:

"tu és torto, mas hás
de ser leve e feliz
com teu filho"

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

cabelos e braços

O perfume dos cabelos das meninas
sinto de longe e o sabonete dos braços
avisam que é tempo de descer ao jardim
e plantar outra flor com gosto de saudade.

Saudade amistosa, serena, discreta.
Nenhuma sabe da mistura dos frascos.

Do conselho que sempre peço
às borboletas que não dormem.

Pelo menos acordam e fingem não dormir
quando desço até o jardim com as narinas
tenras mas pegando fogo.

Uma delas, borboleta,
aconselha-me dormir primeiro.

E só descer ao jardim
com o sonho nos lábios.

indolência

Não sou eu que quero escrever.
São meus dedos sob um olhar cínico e doce.

Augusto dos Anjos
não teria essa simplória cumplicidade.

Senão da pena gasta
e da luz da vela.

Os dois dedos de alguns séculos atrás que beijam o pavio
não é a mesma coisa do que lançar contra a parede
esse teclado empoeirado.

Teclado sujo e gorduroso
do suor de alguns dedos sacanas.

Escrevo porque meus dedos mandam.
E eu que sou louco obedeço a todos eles.

Sem hesitar lá vou eu sujando pouco das unhas.
Que mesmo roídas mantêm uma haste de carne viva.

Não há engrandecimento nem a mim nem a quem lê.
São apenas teclas sujas e gordurosas
e alguns dedos metidos a besta.

O tesouro é o riso irônico do que foi escrito
e das novas manchas nos pulmões.